Em Roraima, o Guardião Esquecido do Brasil

O Forte São Joaquim é talvez o monumento histórico mais emblemático da defesa e da perda de território na Amazônia. Resgatar esta história nos dá dicas sobre o presente e o futuro

ment
Receba notícias no WhatsApp e e-mail

Num cálculo muito impreciso, imagine que de uma população que girava em torno de um milhão de habitantes um quinto, ou umas duzentas mil pessoas, estariam aptas e disponíveis a empreender uma desafiadora travessia dos oceanos. Foi com um contingente talvez equivalente ao Bairro de Copacabana no Rio de Janeiro que paulatinamente se criaram bases no Japão, no Estreito de Ormuz, na Costa da Índia e da África, na China, no Sudeste Asiático, no Atlântico, na América do Sul.

A inacreditável envergadura do esforço do pequenino e pioneiro Portugal merece cada verso que eterniza esta aventura do gênio humano no épico “Lusíadas” de Luiz de Camões. Um capítulo pouco conhecido desta saga sem precedentes é como o pequenino Portugal se firmou na imensa Amazônia.

Para citar apenas um exemplo do planejamento macro de defesa da Bacia Amazônica, vale lembrar a decisão de D. José I, em 1775, de construir o Forte São Joaquim em Roraima que, já naquela época, era cobiçada por diversos atores internacionais. Com uma energia desproporcional aos limitados recursos financeiros e humanos, escolheu-se uma área remota porém estratégica que permitiria exercer uma presença dissuasória sobre os rios Branco, Tacutu e Uraricoera para a construção do Forte.

As ameaças e rivalidades não eram vãs intenções e palavras vazias, eram muito reais e costumavam ocorrer através de um arranjo tão antigo quanto moderno de parceria público-privada. Havia a cobiça dos Holandeses e outros na região mas a política mais agressiva coube à Grã Bretanha. Em 1613 o Rei Britânico Jaime I fez concessões à particulares que equivaliam a “Cartas de Corso Terrestres” para a região compreendida entre o Rio Amazonas e o Rio Essequibo que hoje deságua na Guiana.

Tratava-se de alvarás régios, licenças para que particulares pudessem oficialmente praticar a pirataria. Caberia ao “pirata oficial” pagar uma taxa de imposto seguindo as regras do contrato do que, na prática, era de roubo legalizado. E, de fato, ao longo do tempo foi se somando à pirataria oficialmente sancionada de particulares também a ocupação permanente por parte da Coroa Britânica de territórios amazônicos ao longo dos séculos XVIII e XIX. Em 1811, as tropas do Forte São Joaquim advertiram a presença de uma expedição militar britânica, liderada pelo Capitão D.P. Simon, que alegava estar na região para pacificar grupos indígenas em conflito.

Da expedição militar participava o naturalista John Hancock, que teria alegado motivos de cunho ambiental e científico para esticar uma presença Britânica para dentro do Território de Roraima. Houve negociações e decidiu-se, sem abdicar da presença armada, por escoltar amigavelmente primeiro o contingente militar principal e, depois, o grupo do naturalista de volta às áreas ocupadas pelos Britânicos na Guiana.

O Rei Jaime I da Inglaterra. Pioneiro das “parcerias público-privadas” na Amazônia. (Fonte: wiki commons)

Entre 1835 e 1840 intensificou-se o uso de entes não governamentais, de alegados nobres propósitos, para incrementar a presença estrangeira no território amazônico brasileiro. Pode-se destacar por exemplo a Royal Geographical Society de Londres, que expressava a mesma preocupação científica e ambiental antes defendida pela expedição da qual participou Hancock, ou a instalação de uma missão da Igreja Anglicana para introduzir a fé protestante e o idioma Inglês com novas normas culturais na região.

O momento escolhido para intensificar o investimento na expansão das organizações apresentadas como filantrópicas denotou um fino senso de oportunismo uma vez que coincidiu com o deslocamento das tropas do Forte São Joaquim para o conflito da Revolta da Cabanagem no Pará, que ocorreu naquele exato mesmo período e ocupou as tropas também nos anos posteriores.

Aproveitando o vácuo daquele período, em 1842, estes entes não governamentais, com a Royal Geographical Society of London à frente, já haviam feito toda uma clara delimitação do território que pretendiam extrair do Brasil. O argumento básico é que havia o direito de fazê-lo, uma vez que o Brasil deixara de se fazer presente e o Forte São Joaquim, que antes guardava os confins do país, se encontrava então desocupado na maior parte do tempo. A área, portanto, teria se tornado um vazio brasileiro.

Para reforçar a narrativa também alegou-se à época que as populações indígenas locais eram independentes do Estado Brasileiro, desconectadas da nação, e que, vivendo em estado de penúria e abandono, reclamavam o apoio que a Coroa Britânica generosamente estava disposta a conceder.

Um aceno concreto da suposta boa vontade, além do zelo cientifico e ambiental sempre manifestados, era o Forte Nova Guiné, construído próximo ao esvaziado Forte São Joaquim e à Vila de Pirara. Ali, numa missão humanitária e altruísta, as populações indígenas seriam cuidadas e orientadas à fé e costumes britânicos e integradas ao seu império.

Neste brevíssimo relato caberia destacar que ante os enérgicos protestos do Brasil chegou-se a um entendimento provisório de neutralidade deste território que, aparentemente, não foi honrado pela Grã Bretanha. Assim, em 1896 houve o protesto ante a Rainha Vitória por conta do traçado de limites entre a Venezuela e a Guiana Britânica, cujas linhas foram ardilosamente expandidas para incluir também um significativo território brasileiro.

Joaquim Nabuco, que fez uma robusta defesa do Brasil. (Fonte: wiki commons)

Em 1901, o conflito em Roraima, apresentado como “Questão do Pirara”, foi levado para arbitragem internacional e submetido ao então jovem Rei da Itália, Vitor Emanuel III. Ante a arbitragem quem representou o Brasil foi Joaquim Nabuco que fez, sem dúvida, uma robusta defesa. Mas, infelizmente, o que prevaleceu não foram os fortes argumentos do Ministro Nabuco e sim um acordo de acomodação política.

Dos 32.000 km2 que a Grã Bretanha extrapolava para dentro do território do Brasil, Vitor Emanuel III concedeu 19.000 km2 aos britânicos e 13.000km2 ao brasileiros. Assim, o veredito da arbitragem foi alardeado como salomônico ao buscar repartir o território entre ambas partes. O curioso, porém, é que os 19.000 km2 de território dados à Grã Bretanha parecem coincidir basicamente com as demandas dos entes não governamentais feitas anteriormente.

Desde o interesse alegadamente cientifico e ambiental de John Hancock e da Royal Society, ando pelo assim proclamado zelo humanitário e cultural da Missão Anglicana, os britânicos teriam essencialmente conseguido o território que seus agentes da sociedade civil queriam extrair do Brasil desde as primeiras décadas do século XIX.

Cabe especular que ter apresentado uma grande área para litígio, para depois obter de fato aquela que há muito se cobiçava (com as mais altruístas narrativas), pode ter sido um estratagema político e diplomático dos mais astutos contra o Brasil. E a perda que provocou seguirá irreparável para o país.

O Rei Vitor Emanuel III da Itália e da “decisão salomônica”. (Fonte:wiki commons)

Quanto ao Forte São Joaquim de Roraima, este representa um esforço hercúleo, um feito difícil de se imaginar que recaiu sobre os ombros de uns poucos bravos com pouquíssimos recursos, numa área que em 1775 deveria ser remota e inóspita a um nível que poucos contemporâneos ariam. É inegável que seja um monumento de superação e de desafio, a última fronteira onde chegou a visão de um reino e de um país muito antes da luz elétrica e da internet.

O Forte São Joaquim é história na prática também. Há o que ele defendeu quando o país entendia que deveria cuidá-lo. E há também o pedaço de Brasil que se perdeu para sempre quando deixaram de cuidá-lo. Sou da opinião que é imperativo construir uma réplica em tamanho natural na área, uma atração de turismo cultural de relevância vital para resgatar nosso extenso legado de vitórias e derrotas plasmadas ali.

O Forte São Joaquim é também um elo necessário entre o ado e o futuro, um monumento para o qual o público brasileiro e internacional deveriam ser convidados para refletir sobre o que teria mudado (e o que não teria mudado) na longa trajetória de cobiça pela Amazônia Brasileira. É em Roraima onde deve começar o fim do esquecimento de uma história que nunca terminou.

(English Version)

Brazil’s Forgotten Sentinel in Roraima

Fort São Joaquim is perhaps the most emblematic historical monument representing both the defense and the loss of territory in the Amazon. Reviving this history provides valuable insights into the present and future.

In a highly imprecise estimate, imagine that out of a population of around one million inhabitants, one-fifth—or about two hundred thousand people—were capable and willing to undertake the daunting challenge of crossing the oceans. With a contingent comparable in size to the population of Rio de Janeiro’s Copacabana neighborhood, Portugal gradually established bases in Japan, the Strait of Hormuz, the coasts of India and Africa, China, South East Asia, the Atlantic and South America.

The astonishing scale of tiny, pioneering Portugal’s efforts deserves every verse that immortalizes this feat of human genius in Luís de Camões’ epic “The Lusiads”. A lesser-known chapter of this unprecedented saga is how this small nation managed to establish itself in the vast expanse of the Amazon region.

One example of the strategic defense planning for the Amazon Basin is the decision made by King Joseph I in 1775 to build Fort São Joaquim in Roraima—already at that time a region coveted by various international actors. With an energy disproportionate to its limited financial and human resources, Portugal selected a remote yet strategic area to construct the fort, allowing it to maintain a deterrent presence over the Branco, Tacutu, and Uraricoera rivers.

Threats and rivalries were not mere empty words or idle intentions—they were very real and often materialized through an arrangement as ancient as it is modern: a collaboration between public and private interests. The Dutch and others had their share of ambitions in the region, but the most aggressive policy came from Great Britain. In 1613, King James I of England granted concessions that amounted to ‘Land Privateering Charters’ for the territory between the Amazon River and the Essequibo River, which now flows into Guyana.

These public-private partnerships officially authorized individuals to engage in piracy and the ‘official pirate’ was required to pay a tax according to the of what was, in practice, legalized theft. Over time, alongside officially sanctioned privateering, Britain also established a permanent occupation of Amazonian territories throughout the 18th and 19th centuries. In 1811, the troops at Fort São Joaquim detected the presence of a British military expedition led by Captain D.P. Simon, who allegedly was in the region to pacify Indigenous groups engaged in conflict.

The expedition also included naturalist John Hancock, who purportedly cited environmental and scientific motives as justification for extending British presence into the territory of Roraima. Negotiations took place, and it was decided—without relinquishing an armed presence—to amicably escort first the main military contingent and later the naturalist’s group back to British-occupied areas in Guyana.

Between 1835 and 1840, the use of non-governmental entities, allegedly driven by noble purposes, was intensified to expand foreign presence in the Brazilian Amazonian territory. Prominent examples include the Royal Geographical Society of London, which echoed the same scientific and environmental concerns previously advocated by the expedition in which Hancock took part, as well as the establishment of an Anglican Church mission aimed at introducing the Protestant faith and the English language, along with new cultural norms in the region.

The timing selected for ramping up investment in the expansion of supposedly philanthropic organizations displayed a sharp sense of opportunism, as it coincided with the redeployment of Fort São Joaquim’s troops to the Cabanagem Revolt in Pará—an ongoing conflict that began during that exact period and continued to demand their engagement in the following years. Exploiting the power vacuum of the time, by 1842, these non-governmental entities, spearheaded by the Royal Geographical Society of London, had already drawn clear boundaries around the territory they aimed to extract from Brazil.

The basic argument was that they had the right to do so, as Brazil had ceased to maintain a presence, and Fort São Joaquim, which had once guarded the country’s borders, was now mostly unoccupied. The area, therefore, was considered a Brazilian void. To reinforce this narrative, it was also asserted at the time that the local Indigenous populations were independent of the Brazilian state, detached from the nation, and living in poverty and neglect, seeking the that the British Crown was generously offering.

A concrete display of the purported goodwill—beyond the consistently professed scientific and environmental stewardship—was Fort Nova Guiné, constructed near the abandoned Fort São Joaquim and the settlement of Pirara. There, under the pretense of a humanitarian and altruistic mission, Indigenous populations would be cared for, guided toward British faith and customs, and assimilated into the British Empire.


In this brief , it is worth noting that, in response to Brazil’s strong protests, a temporary neutrality agreement over the territory was reached—one that, apparently, was not honored by Great Britain. Thus, in 1896, a protest was made to Queen Victoria regarding the boundary lines between Venezuela and British Guiana, whose borders were cleverly extended to incorporate substantial Brazilian territory.

In 1901, the conflict in Roraima, known as the “Pirara Issue,” was brought to international arbitration and submitted to the then young King of Italy, Victor Emmanuel III. In the arbitration, Joaquim Nabuco, who undoubtedly made a robust defense, represented Brazil. Unfortunately, it was not Nabuco’s compelling arguments that prevailed, but rather a resolution that bore all the hallmarks of a politically motivated compromise. Of the 32,000 km² that Great Britain had extended into Brazilian territory, Victor Emmanuel III awarded 19,000 km² to the British and 13,000 km² to the Brazilians.

Thus, the arbitration’s verdict was hailed as “solomonic,” as it sought to divide the territory between both parties. What is striking, however, is that the 19,000 km² of territory granted to Great Britain seem to largely coincide with the demands made earlier by the non-governmental entities. From the allegedly scientific and environmental interest of John Hancock and the Royal Society, to the so-called humanitarian and cultural zeal of the Anglican Mission, the British essentially seem to have achieved the territory that their civil society agents had sought to extract from Brazil since the early decades of the 19th century.

One might speculate that presenting a vast area for dispute, only to later essentially secure what had long been coveted (under the guise of the most altruistic narratives), could have been one of the most astute political and diplomatic maneuvers against Brazil. The loss it caused, needless to say, will remain irreparable for the country.


As for Fort São Joaquim in Roraima, it represents a Herculean effort, an achievement hard to fathom, one that fell on the shoulders of a few brave souls with scant resources, in an area that in 1775 must have been remote and inhospitable to a degree that probably few of our time-mates could endure.

It is undeniable that it stands as a monument of endurance—the last frontier where the vision of a kingdom and a country reached, long before the advent of electricity and the internet. Fort São Joaquim is also history in practice. It teaches us how, when the country cared for it, the territory was successfully defended.

And it also offers the hard lesson that a piece of Brazil was lost forever when it was no longer tended to. I am of the opinion that a full-scale replica should be constructed on the site— a cultural tourism landmark of utmost significance, meant to shed light on our legacy of victories and defeats etched there. Fort São Joaquim is also a vital bridge between the past and the future—a monument of reflection where both the Brazilian and international public should be invited to contemplate what might have changed (and what might have remained unchanged) in the long history of disputes over the Brazilian Amazon. We must begin in Roraima to reclaim from oblivion a long-forgotten history that continues to unfold.

ment
Receba notícias no WhatsApp e e-mail
Olav Schrader
Olav Schrader é especialista em patrimônio cultural, escritor, palestrante, consultor e gestor de projetos. Tem Bachelor´s Degree e M.A. – Master of Arts pela Universidade de Amsterdam, Reino dos Países Baixos e Diploma de Pós-Graduação pela Universidade de Deusto, Espanha, na área de Relações Internacionais, com ênfase em História e Cultura. Desde 2006, participa de projetos ligados ao Patrimônio Cultural Brasileiro. Foi superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Rio de Janeiro, de 2020 a 2023.

Comente

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui